Rui – E se o Universo for incausado?
Se cada um dos entes que compõem o Universo é causado (porque, recorde-se, tendo a possibilidade de não existir, de facto existem, mas o Ser Necessário não pode ter sequer a possibilidade de não existir), então o Universo é um conjunto de entes causados. Se assim é (e é), então o Universo (ou Universos?) é todo ele um conjunto causado, porque todo ele composto de entes causados.
Rui – Você é chato “pra cacete”! E se o Universo for um conjunto infinito de causa e efeito, ou seja, um Universo sem principio?
Se eu chutar uma bola, e essa bola partir um vidro, há aqui duas causas: a causa Primeira (o que chuta), e a causa segunda (a bola), que produz um efeito (a quebra do vidro). Mas a quebra do vidro (efeito), pode ser também ele outra causa segunda se vier a magoar alguém. Por outro lado, o chutador da bola é, de facto, uma causa segunda também.
Ora, num Universo, mesmo infinito, em que se sucedem, infinitamente, causas/efeitos, todas essas causas são “causas segundas”. Pois bem. Só podemos falar em causas segundas havendo (é forçoso que assim seja) a Causa Primeira.
Nesta ideia, teriamos, assim, um Universo infinitamente “causa segunda”. A Causa Primeira impõem-se, mesmo num Universo infinito. De facto, mesmo num infinito leque de causas, estas, existindo, são-no no ambito da possibilidade: podendo não ser, existem. Portanto, dependência radical, mesmo no infinito.
Mas… eis o grande argumento, que moveu sistemas politicos:
Rui – E se o Ser Necessário for a matéria, sendo esta apenas um único ente/ser, que ganha formas, mais complexas ou menos complexas, pelo seu próprio movimento, existindo desde sempre?
Vou-me deter nesta questão por mais tempo, por a achar pertinente.
Este tipo de argumento é sofisticado, e pertence a muitas escolas filosóficas ateias.
Começemos por reparar de novo que nada obsta a que o Universo seja uma série infinita de explosões (big bang) e implosões. O Ser Necessário não explica fenómenos; explica e dota o ser/ente de principio de razão suficiênte. Em relação aos fenómenos e sua previsibilidade, o Ser é fundamento no campo da necessidade… do ser mesmo das coisas.
Já agora, reparem que uma série infinita de big bangs e implosões se insere nas causas segundas. Estas, só por si, redundam em “sem principio de razão suficiênte”, ou melhor, “o seu principio de razão suficiênte, é ser sem principio de razão suficiênte”.
Talvez alguém ainda advogasse que tem a matéria em si mesma o principio de razão suficiênte, não possuindo a matéria a possibilidade de não existir. Porém, esta opinião parece querer abstrair a matéria das coisas. Na verdade, já vimos que tudo o que nos rodeia, tendo a possibilidade de não existir, de facto existem. Ora, essas coisas são matéria que, como tal, existe, embora tendo a possibilidade de não existir. Se assim é, então a matéria é contingente, porque todas as coisas do Universo são ao mesmo tempo contingêntes e matéria. A matéria não é separável das coisas contingêntes. Se todas as coisas são contingêntes, se todas são matéria, e se o Universo é o conjunto de todas as coisas contingêntes, então o Universo, mesmo com existência infinita, é infinitamente contingênte.
O movimento da matéria, que constitui a complexidade dos diferentes corpos e substâncias, é também ele contingênte, pois, sendo esse movimento de um modo, nada obsta a que seja de outro, tal como nada obsta a que nem sequer o fosse.
Vale a pena recordar a primeira via de S. Tomás de Aquino, inspirado em Aristóteles: “Tudo o que se move é movido por outro”. De facto, esta via acaba tendo grande estreiteza com a prova da causalidade, na medida em que este “fluir” do Universo corresponde às causas segundas que, como se viu, clama pela causa Primeira. També, aqui, mudando os termos, temos que reconhecer um Movente, ou fonte de fluir, que não é móvel, não é fruto de fluir. É o Movente Imóvel, o Ser Necessário.
Reparemos que procurar resolver o problema da contingência, recorrendo a uma série infinita de situações contingentes é inútil e absurdo: é deitar água em cisternas furadas. Uma série infinitamente contingênte é uma série infinitamente necessitada do Ser Necessário.
Mas esta visão ateia tem outra particularidade: num conjunto de matéria, em que toda ela seria o Ser Necessário, nenhuma das coisas/partes poderia ser mais perfeita que outra coisa/parte (o homem teria a mesma perfeição que uma pedra, por exemplo). Todas elas teriam que possuir a mesma perfeição e subsistência por si mesmas e em si mesmas. Ou seja, numa visão destas, teriamos um Ser Necessário composto pela oposição entre ser e não-ser, pois uma coisa/ente menos perfeita é algo que possui não-ser em relação a outra coisa qualquer. Mais ainda: o simples facto de alguma coisa ser diferente da outra, ser outra forma, é simplesmente não-ser em relação a outra qualquer parte do Ser Necessário. Ora, isto é contraditório com a noção de Ser Necesssário, no qual só pode haver o ser, entendido este Ser em modo intensivo.
Aqui já começamos a descortinar melhor o que Parménides havia percebido, apesar da sua confusão entre o Ser que ele cogitava e o Universo que o rodeava.
O Ser Necessário tem que ser absolutamente Uno, simples e absoluta unidade, não divisivel em partes. Se a matéria fosse o Ser Necessário, por um lado, e por outro uma das suas partes não o fosse (e não é, pois cada coisa existe, embora tendo a possibilidade de não existir), nenhuma das suas partes o seria (e não é). Com efeito, no multiplo, nenhuma das partes desse multiplo possui a plenitude do Ser.
O Ser Necessário tem de possuir em Si mesmo o Ser de modo absoluto e permanente: no fluir o ser “vai discorrendo”. Por isso, esse fluir remete à contingência. No Ser Necessário não há, pois, fluir, movimento, mudança, produção de causalidades em Si mesmo. Realmente, o fluir, o movimento, as causas e efeitos possiveis, remetem ao ambito da possibilidade, inclusivé a possibilidade de nem sequer ser, e sendo, poder deixar de Ser.
Ora, o que pode deixar de ser, também podia nunca ter sido. Porém, o Ser se impõe com evidência: É absolutamente necessário que seja, sem possibilidade de não ter sido, não ser, nem deixar de ser. E esse Ser não é nada que pertença ao Universo que, no seu todo, ou nas suas partes, de modo finito, ou infinito, embora tendo a possibilidade de não existir, existe. A possibilidade, recorde-se, não pertence à esfera do Ser Necessário.
Rui – Há ainda uma coisa que me atormenta. Se é possivel que o Universo seja temporalmente infinito, onde se situa o “ex nihilo” (do nada) da criação? O que é que significa, assim, o termo “criação”?
Na esteira de Aquino, é correcto dizer-se que o termo “Criação” designa, antes de mais, e sobretudo, a total inexistência do ente antes da sua produção por parte de Deus.
Perante a questão da infinitude temporal do Universo, deve-se ter em conta que, rigorosamente, ao se reflectir sobre a Criação, não se pode conceber sequer um ponto de partida, como quem dissesse: “houve um tempo em que o Universo não existia”! Ora, isto não pode ser dito. E dizê-lo é errado. Mesmo que não seja temporalmente infinito, não deve ser pensado assim. De facto, “só a imaginação, identificando sub-repticiamente o nada, pode lhe impor essa parte (ponto de partida). Tudo o que se pode dizer de tal acção é que se trata de uma relação pura, e como não se dá criação antes do criado, compreende-se que a relação em questão não é uma relação bilateral, mas unilateral: é uma relação que vai do criado a Deus, e não vice-versa. A criação, concebida pela nossa razão como uma acção intermendiária entre o Criador e a criatura, é, de facto, posterior à criatura” (Batista Mondin, Quem é Deus? – Elementos de teologia filosófica cap XI, 1,3).
Reparemos que não podemos dizer “primeiramente o mundo não era, e depois passou a ser”, pois na criação não há nenhuma passagem, nenhuma mudança acontecida, sucessão de estados, passagem do nada ao ser. Esse “primeiramente” do mundo não ser, não tem qualquer consistência.
Atendendo a estes principios, S. Tomás de Aquino afirma, e com razão, que a Criação designa, não própriamente um começo mas sim que o mundo é e que o mundo depende da sua fonte. Temos, assim, uma noção de criação como acto contínuo. O Ser Necessário que temos vindo a reflectir, cria no sentido em que, como Plenitude máxima e intensiva de Ser, mantém os seres contingêntes na orbita da existência, lhes dá o seu existir, lhes comunica a existência, atributo exclusivo do Ser necessário, mas que este comunica aos entes, ao Universo, comunicação da existência que é, também esse “comunicar” contingênte”, pois o Ser Necessário poderia não ter comunicado a existência ao Universo, e continuar a ser o Ser Necessário.
3 – Uma resenha do que pensámos
Não me quero alongar mais, pois já vai longo o texto.
Vimos (espero) que o Ser Necessário existe, e que não é o Universo.
Vimos que este Ser, como não participante na ordem da possibilidade, não é objecto de devir.
Também não pode conhecer limitação em Si, pois a finitude (qualitativa – distinção importante da infinitude numérica) remete para a possibilidade.
Também não é sujeito de temporalidade, pois o tempo remete ao contingênte, ao “por ser ainda”, ou “poder ser”. O Ser Necessário não está “por ser”, nem “poder ser”: É.
As suas qualidades são infinitas, pois as qualidades e perfeições finitas é o que faz o contingênte ser contingênte, ser possibilidade de mais, de menos, ou de nem ser. O Ser Necessário é, de modo intensivo. Só ele é por Si e em Si.
O Ser Necessário comunica a existência aos entes. Não está distante dos entes, segundo o modelo de Aristóteles, mas continuamente os mantém no seu existir.
É a partir da criação como comunicação de algo de Deus às criaturas, que no próximo texto iremos reflectir se, sem a Revelação sobrenatural, é possivel ou não dizer algo mais sobre Deus, para além da sua infinitude qualitativa, extra-temporalidade e absoluta unidade, aspectos da Sua Plenitude de Ser, o Esse ipsum subsistens (o próprio Ser Subsistente).
Rui Silva autor do blog Cotidiano Espiritual
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