sábado, 12 de março de 2011

Sagrada Escritura Teologia filosófica: razoabilidade da existência de Deus parte I



Nota: as citações da Escritura serão sempre feitas a partir da Bíblia de Jerusalém, em português do Brasil; a utilização do plural não é um plural magestático, mas pretende estabelecer uma pessoalidade com o leitor, de modo a levar o leitor a pensar juntamente comigo, a cativá-lo no assunto.
Antes de iniciar, gostaria de manifestar a minha gratidão pela simpatia manifestada pelos responsáveis do blog em me convidarem a escrever neste espaço, solicitação à qual acedi de bom grado.
Quando me propuseram escrever neste blog, eu pensei em primeiro abordar o tipo de verdades que podemos encontrar na Escritura. Porém, achei conveniente ir mais fundo, e conversar um pouco convosco sobre a razoabilidade da Revelação; ou seja, antes de vermos o tipo de verdade da Bíblia, seria importante refletirmos se é razoavelmente admissivel afirmar que a Biblia é inspirada, portadora de uma verdade acerca da qual se deve abeirar toda a pessoa.

Um dia, o Rui e o Carlos estavam a conversar sobre a Fé.
Rui: Porque é que me dizes que a Bíblia é inspirada?
Carlos: Porque ela mesma diz que é inspirada por Deus!!
Rui: Sim, eu sei. Mas assim estás a defender a inspiração da Biblia por ela mesma. O que eu queria era que argumentasses a inspiração da Biblia, sem recorrer a ela.
Carlos: Bem, a Bíblia é inspiradea porque Deus se revela, se dá a conhecer, inspirando a Escritura
Rui: Porque é que Deus se revela? E, se se revela, porque se revela na Bíblia?
Carlos: Bem, Deus revela-se porque ama, e revela-se na Escritura porque ela dá o testemunho mais perfeito de Deus!!
Rui: Mas ama? Porquê? E como sei que se trata essa revelação do testemunho mais perfeito de Deus? E porque existe Deus? É preciso que exista?



Este tipo de diálogo, vêmo-lo muitas vezes praticado pelas seitas. Quando querem defender a inspiração da Bíblia recorrem aos dois textos clássicos do NT em que se afirma essa inspiração. São eles II Tm 3,14-17 e II Pe 1,21.
Mas, diante do tribunal da razão, esta resposta pouco, ou nada ajuda a quem quer tentar perceber e, percebendo, encontrar algo que o satisfaça.
Não podemos defender, diante dos cépticos, a inspiração da Biblia por ela mesma. É que, se nós defendemos a inspiração da Biblia por ela mesma, é porque, logo à partida, admitimos a sua inspiração. E é justamente esse “logo à partida da inspiração” que nos é questionado. É evidente que para nós, a questão nem se coloca de imediato, porque cremos nessa inspiração quase que instintivamente. Admitimo-la sem grandes perguntas, tal como admitimos Deus sem grandes perguntas.
Mas é bom desafiarmos a nossa razão justamente para nos solidificarmos no nosso credo e, por outro lado, para sermos capazes de dar razões da nossa Fé.

Será que o acto de crer tem base racional? Não será, antes, uma questão de gosto, de particular opinião, de mero sentimento? Não será a Fé uma gigantesca ilusão, alienante? Será que podemos dissertar sobre Deus, sem a Sua Revelação?
Num primeiro momento, digo-vos que sim. Podemos falar de Deus sem a Revelação, apenas recorrendo à razão. Num outro momento digo-vos que não, porque conhecer e descobrir Deus sem a Revelação sobrenatural é possivel, mas não sem a Revelação natural, ou seja, a que nos é facultada pela reflexão acerca do problema do ser, quando pensamos a realidade que nos rodeia, e vemos que é, existe, mas é contingente, é também não-ser. É a tarefa da teologia filosófica, ou teodiceia. Não vou aprofundar muito esta questão, porque é vasta em demasia para ser aqui exposta, mas limitar-me-ei a reflectir convosco sobre o caminho fundamental a percorrer desde a realidade que vemos, à Realidade que não vemos, mas da qual podemos ter a certeza, pois que a não-evidência de algo não significa incerteza, desconhecimento. Vamos ver que Deus, não-evidente, não é uma mera possibilidade, mas é mesmo Necessidade que se impõe à inteligência que não se fica na preguiça em raciocinar.

1 – Um caminho, entre vários possiveis

Todos os caminhos para levar a pura razão a Deus partem da contingência da realidade.
A plataforma de lançamento para Deus é a contingência do Universo.

Sujeito – O ente contingente
Cópula – é
Predicado – causado.

Pois bem. Se o Universo é contingente, então é causado. Não podemos afirmar do contingente que seja contingente e necessário ao mesmo tempo.
Mas o que é isto de contingente? Contingente é aquilo que, podendo, ou tendo a possibilidade de não existir, porém existe. Ou então também podemos dizer que é aquilo que existindo, tem a possibilidade de deixar de existir. Também podemos pensar que contingente é aquilo que, tendo o ser, tem ao mesmo tempo o não-ser: uma parte, ou algo de um ser/enter é não-ser do outro ser/ente.
No fundo, é aquilo que, existindo, depende de outro para existir.

Reparemos neste principio basilar, e retenhamo-lo: tudo o que, tendo a possibilidade de não existir, porém existe, é causado.
Mas o ser tem a possibilidade de não existir? Ou pode ser “ser” e “não-ser” ao mesmo tempo?
Mas porque é que o que, tendo a possibilidade de não existir, existindo, é causado?
É o problema metafísico da necessidade do ser, que é colocado por um dos “Primeiros princípios” da metafísica: “tudo o que é, tem a sua razão de ser”, ou, dito de outro modo mais académico, “tudo o que é, possui princípio de razão suficiênte”.

Parménides foi, de entre os filósofos gregos, aquele que inferiu mais profundamente o problema do ser, sendo por isso denominado como o fundador da metafísica.
Ele aprofundou o problema já pressentido pelos filósofos anteriores a ele, sobre o qual se firma o famoso axioma de que “do nada, nada advém”.
O “nada absoluto”, o nada-absoluto-de-ser não pode existir, nem sequer pode ser cogitado. Nunca existiu, não existe, nem poderá existir.
O “ser” em Parménides é aquele que não tem sequer a possibilidade de não existir, uma vez que o nada produz nada. Se o nada porventura produzisse alguma coisa, talvez se pudesse admitir que o “ser” pudesse ter a possibilidade de não existir.
Mas como não é assim, o ser, para Parménides, não pode ter algo de “não-ser”, não pode ser “ser” e ao mesmo tempo “não-ser”, nem pode ser colocado como possibilidade. É Necessário.
Portanto, o ser e a sua eternidade apresentam-se como necessários à inteligência (a não ser que duvidemos que existimos)!
Por isso, para ele, só o ser existe, imutável, perene, estável e sem mudança, justamente porque o devir, a contingência, a mudança, implicam o multiplo, a introdução de “partes” no ser, o confronto entre ser uma parte e não ser nada da outra parte, e vice-versa. Ora, o ser não pode ter nada de “não-ser” qualquer coisa. Para ele, o ser é uno e eterno: uno, porque o multiplo implica oposição, implica o “ser-nada” da outra parte; eterno, porque não pode não existir, nem tem a possibilidade de não existir. Existe por necessidade.

Mas Parménides só pensa o ser como physis, como a realidade que o rodeia. Por isso ele viu-se obrigado, por imposição da razão, a negar à realidade o seu devir, a sua mudança, a sua contingência, o seu “não-ser” alguma coisa. Daí que a reação dos sofistas tenha passado por negar que algo exista, e dizer que, se algo existe, não pode ser conhecido. E ainda que, se algo for conhecido, não pode ser comunicado.
Não vou alongar mais esta tema da filosofia grega. Serviu (espero) para contextualizar o problema.

E o problema mantém-se para nós, não é?
Nós vemos, por um lado, que o ser se impõe, em virtude do tal princípio metafisico da “razão suficiênte” da realidade, em que o nada absoluto não pode ser pensado nem afirmado como tal. E por outro vemos que a realidade, ou os entes que a compõem, existem, embora tendo a possibilidade de não existir, ou não sendo simplesmente necessário que existam. Mas existem!!

Se a realidade existe, mas existe como possibilidade (porque podia não existir… não é de todo necessário que os entes existam… e podem deixar de existir), e se vemos que, assim, ela não possui em si mesma princípio de razão suficiênte, então é forçoso admitir para já, em virtude da tal necessidade segundo a qual “do nada nada advém”, que o tal ser de Parménides, que não pode não existir, nem tem como possibilidade não existir, está para lá do Universo contingênte. E isso Parménides não conseguiu discernir, negando a contingência dos entes, da realidade.
Assim podemos novamente afirmar com convicção que o Universo é contingênte, pois não existe por necessidade, mas podia não existir. Porém existe. Se existe (e existe), é causado. Que Causa Primeira é esta? Tem de ser uma causa que não se insira no universo da possibilidade, mas sim no da Necessidade. Como tal, está para lá do Universo. É o chamado “Ser Necessário” da filosofia, que é incausado.
Então, o Universo, a totalidade da realidade, é causada, porque, tendo a possibilidade de não existir, existe. E é causado pelo Ser que não pode não existir. E não pode não existir porque, já vimos, do nada, nada advém, o nada produz nada. O “nada anterior ao ser não existe, nem como possibilidade. Como possibilidade e necessidade só existe o ser (contingênte enquanto possibilidade, e Necessário enquanto necessidade de razão suficiênte da realidade que se impõe como existente).

Assim, podemos dizer que a realidade existe, recebendo de Outro o seu princípio de razão suficiênte. Quer isto dizer que os entes (contingêntes) possuem o ser, de forma transitória, mas não se identificam com o ser mesmo. São ser (na medida em que, de facto, existem), mas são também não-ser. Possuem o ser, mas não de modo eminente e infinitamente perfeito (não vamos reflectir exaustivamente sobre a ontologia, ou doutrina sobre o ser, no que toca aos conceitos de potencia, acto, substância e acidentes) Se são existentes, porém sem o principio de razão suficiênte em si mesmos (porque podiam não existir), então aquilo que são, são-no de forma participada. Assim, tudo neles, na medida em que é alguma coisa, é participado. Retenhamos esta noção de “participação”, pois ela vai ser útil quando reflectirmos um pouco sobre se podemos e o que podemos dizer acerca do Ser Necessário, ao Qual chamamos Deus.

Antes de avançar, vale a pena salientar, para não cairmos em confusão, que o princípio de causalidade metafísico se distingue da causalidade científica. A causalidade científica “exprime a ligação entre fenómenos físicos, naturais. Tem apenas a força da probabilidade física, a força das leis da natureza, que são relativas, contingentes, prováveis e valem apenas para o mundo físico, material” (A. Vaz Pinto, Ateismo e Fé).
O pricipio metafísico supera o mero físico, entra dentro do problema do ser (meta-física, para lá da física), não interferindo em nada nas ciências da natureza. Os seus principios são universais, têm valor absoluto e necessário.

2 – As nossas objeções

A dúvida não é imprópria do crente. Imprópria do crente é a incredulidade. Suscitar a dúvida é principio de sabedoria. Será que temos a coragem de testar a nossa razão, submetendo nesse tribunal o que acreditamos?
Talvez haja perguntas que o nosso intimo fez e faz e que nós, por medo de sermos mal entendidos pelos irmãos na fé, nem ousamos expressar.
Vamos ter a ousadia de o fazer agora, com algumas perguntas suscitadas pela personagem inquietante do diálogo que vimos no inicio (personagem que faz o papel de “advogado do diabo”).

Rui – Mas, e se se admitir que o Universo afinal é Necessário por si mesmo, sendo causa de si mesmo?

Ora temos aqui uma afirmação (quando nos falam disto já nem é interrogação, dada a presunção de quem a diz) muito escutada hoje em dia. Trata-se da ideia de que o Universo se causa a si mesmo, existindo, assim, desde sempre, por tempo infinito.
Vale a pena salientar e deixar BEM CLARO à nossas cabeças que o Universo pode existir desde sempre, sem que tal afirmação se confronte, em nada, com a afirmação de Deus. Aliás, a afirmação do Universo como existente desde sempre não é assim tão gratuita, e até ajuda a perceber melhor a correta ideia da criação ex nihilo.
Mas então o Universo é causa de si mesmo?
A afirmação, feita sem grande raciocinio, de que o Universo seja causa de si mesmo, redunda em absurdo: com efeito, uma coisa que se causa a si mesma, causa-se a si mesma, antes de existir. Ora, isto não pode ser, porque ou uma coisa existe, ou não.

Continua...
Rui Silva
Autor do blog Cotidiano Espiritual


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