segunda-feira, 23 de maio de 2011

Teologia filosófica – Atributos de Deus




Sagrada Escritura III
Teologia filosófica – atributos de Deus

“O homem sempre procurou dar um rosto a Deus. Embora sabendo que Deus transcende infinitamente todos os entes, todos os conceitos e palavras, o homem nunca desistiu de dar-lhe uma imagem, uma figura, um rosto; não raramente o fez cair naqueles absirdos antropomórficos de que estão cheias as religiões pagãs, as quais «trocaram a glõria do Deus incorruptivel por imagens do homem corruptivel, de aves, quadrupedes e répteis (Rm 1,23)». De qualquer modo, a aspiração humana de dar a Deus um rosto é legitima (...). aqui damos à palavra «face» um sentido metafórico, figurado, pois não sendo feito de matéria e não tendo um corpo, Deus não possui própriamente um rosto. Procuraremos, assim, fixar aquelas linhas, qualidades, traços singulares que identificam de modo absolutamente inequivoco e inconfundivel o Ser divino” (Battista Mondin, Elementos de teologia filosófica, cap XI, I).
Como podemos chegar a este traços, qualidades de Deus? Pelas qualidades dos entes, das coisas que nos rodeiam. Mas, já devemos ter lembrado, Deus não é duro nem mole, nem quente nem frio, nem azul nem verde, nem qualquer outra caracteristica que possamos aludir, para além do ser das coisas que, enquanto participado, já vimos, mais que um atributo de Deus, é a Sua essência: Deus é pura esseidade, puro ato de Ser.
Eu queria ter evitado estes aspectos, mas vai ter que ser.
E as coisas o que são? São entes compostos de acto (o acto de serem a essência que são), e de essência (elemento formal constitutivo de uma coisa). A essência não basta para formar o ser de uma coisa. Exige-se um segundo principio, a existência, ou acto de ser. É a existência que confere atualidade a uma essência. Para além destes dois compostos do ente, em metafísica também se fala em potência, que é a possibilidade de vir-a-ser outra essência, ou de ser uma mesma essência, ainda que com outros acidentes (caracteristicas materias do ente). Aristóteles e toda a escolástica irá ver na potência um substrato da essência dos entes. Seja como for, em Deus, essência e existência se identificam. Se assim não fosse, o ente divino seria sujeito de potência, do devir, ainda que no ambito da possibilidade, e tal, já vimos, não se pode admitir.
Existe, no nosso site, na parte dos livros, um texto de S. Tomás de Aquino, “O ente e a essência” (se não estou em erro), que vale a pena ler com atenção.
Os transcedentais
Que propriedades, qualidades, perfeições, possuem os entes, que, por elas, se possam fazer derivar de Deus, posto que a causa eficiênte, o Principio de Razão Suficiênte, comunica algo de Si ao contingênte?? Os metafísicos, a ontologia em geral, tem distinguido commumente três, mas muitos acrescem mais dois, com os quais eu concordo.
Os transcendentais são aspectos, qualidades, perfeições, que existem em qualquer ente do Universo, em tudo o que leva a sigla de existente. São a verdade, unidade, e bondade. Como disse, muitos autores acrescentam mais dois: a beleza e a realidade. Assim podemos dizer que todas as coisas são verdadeiras, todas as coisas são unas, todas as coisas possuem bondade, todas as coisas possuem beleza, e todas as coisas são realidade.
Vamos pensar um pouco sobre estas qualidades universais dos entes.
1 – Verdade

Todas as coisas são verdadeiras. Podemos considerar que se trata de um atributo inteligivel imediato. Ao nível do senso comum, não duvidamos, de forma sistemática, da verdade, como atributo dos entes. A critica à capacidade de conhecer a verdade dos entes surge com raizes em Kant, na sua “Critica da razão pura”. Já vimos que este filósofo apenas considera como digno de ser valorado o fenómeno, a manifestabilidade dos entes, deixando, ou irrelevando a essência dos mesmos. Já que só inteligimos sobre o fenómeno, e já que nada conhecemos, nem podemos conhecer, que não tenha passado pelos sentidos, então, segundo Kant, só podemos afirmar com certeza a manifestabilidade dos entes, mas não a sua essência. Nada poderemos, assim, dizer sobre o ser mesmo dos entes. Mas nós também já observámos, e bem, que sem ser, e sem a verdade do ser do ente, não há fenómeno, nem fenómeno verdadeiro.
Não cabe nesta reflexão analisar o complexo historial da espistemologia, mas vale a pena salientar que, com Kant, se abre a porta para o ateismo sistemático (embora Kant fosse crente), primeiramente negando a possibilidade metafísica, e, num estágio mais avançado (sobretudo com Nietzsche e seus seguidores), negando a própria verdade e realidade. Este filósofo engraçado dizia, pois, que “não há factos; só há interpretações” (embora este filosófo não tenha reparado que se nega, de modo sub-repticio, a si mesmo e à sua tese – também a sua tese é uma interpretação, não um facto. Logo, não pode ser afirmada convictamente. Se for afirmada convictamenmte, então há factos, e não somente interpretações).
Do radicalismo gnoseológico, passaram os modernos filósofos à hermenêutica, que, deixando um pouco de lado o problema do ser, se concentraram no problema da linguagem, e das suas relações com o conhecimento, como meio e modo de pensar sobre o ser, insistindo agora na “verdade-para-nós” e na “verdade-em-nós”, irrelevando a “verdade-em-si”. Este nível de verdade é plasmado, configurado, pela linguagem.
Mas, seja como for, a verdade do ente se impõe por si. Impor uma não-verdade do ente, é impor uma verdade – a do não ser. Vimos acima que tal raciocinio redunda em absurdo lógico. Tornar irrelevante a verdade-em-si do ente não é negá-la, nem tal pode ser. O simples facto de se questionar a verdade do ente, é a prova formal da sua verdade. Se não fosse verdadeiro, não haveria o seu fenómeno; não poderia ser questionado.
Sendo, como vimos já anteriormente, que o ente é contingente, contingente é também a sua verdade. Trata-se, pois, de uma verdade participada.
2 – Unidade

Todas as coisas são unas. Cada ente é radicalmente único em relação a outro ente. Isto é verdade para o simples átomo. Mesmo num contexto científico em que se advogue a existência de infinitos universos paralelos, embora paralelos, um é paralelo de um outro, e isto mesmo até ao infinito.
Mas esta unidade dos entes é divisível em multiplicidade, em partes. Além disso, os entes são um composto de acto (de ser) e essência. Deste modo temos uma determinação-que-é, e que é una. Porém, essa unidade é contingente, não absoluta, porque os entes são “complexos”, porque compostos. Trata-se de uma unidade participada, comunicada, pelo Ser Necessário, pois que o ser dos entes, a sua determinação-que-é, é participada, como já vimos refletindo anteriormente.
3 - Bondade

Todas as coisas são boas. Esta predicação da bondade dos entes, de todos, é, juntamente com a beleza, o que mais questões coloca ao senso comum. O bom e o mau parece que existem, e que se reduzem ao uso, ao aspecto utilitarista das coisas, dos entes. Ou seja, parece que a bondade e maldade são qualificativos subjectivos atribuidos pelo sujeito pensante. Uma coisa, para uns é boa, para outros é má. Se assim é, como se pode predicar dos entes a sua bondade?
Uma coisa pode ser boa ou má, para nós. Tal como a verdade-para-nós das coisas se distingue da verdade-em-si das mesmas coisas. Se assim é, será que as coisas não são boas nem más, mas axiologicamente neutras? Dito de outro modo, a verdade-em-si dos entes não é boa nem má?
Comecemos por reparar que atribuir maldade, ou predicar de algo maldade, bem vista a questão, nem se trata de maldade como qualidade ontológica. À pergunta: “entre a pedra e a planta, qual dois dois é mais mau?” certamente responderemos que é a pedra “mais má” do que a planta. Porquê? Justamente porque a pedra possui menos qualidades, ou as possui em grau menor do que a planta. Mas, e entre a pedra e um animal? Será que a planta, que antes era boa, passa a ser má, porque o animal possui mais qualidades que a planta? Claro que não. A planta é mais má, ou menos boa, do que o animal.
Visto este aspecto, deste modo simples, nós acabamos por perceber que a “maldade” das coisas, mais não é do que uma maior ou menor bondade, maior ou menor perfeição. Reparemos que falámos já da bondade “para nós”. Mas esta “bondade para nós” não trata do aspecto ontológico, do ser mesmo das coisas, mas do seu aspecto de utilidade, ou inutilidade, benefício ou maleficio.
Mas bem diferente desta abordagem baseada no utilitarismo, é a reflexão sobre os entes mesmos. O que vemos dos entes? Uns são mais perfeitos que outros. E ser imperfeito não é ser mau, mas ser menos (in) perfeito, menos bom. Conforme vemos, não é a maldade que é afirmada (nunca é afirmada), mas sim a bondade mesma das coisas. A maldade não é dotada de existência ontológica, mas é, sem dúvida, apenas e somente a privação de ser, ou a privação de uma perfeição devida. Desta sorte, a bondade dos entes não é predicável por nós, mas é condição intrinseca ao acto de serem as determinações-que-são. Os entes não são bons por nós acharmos que são bons. A sua bondade predica-se pela sua positividade, pelo seu existir. Tudo é um bem, tudo possui bondade. Mas essa bondade pode ser maior ou menor. O que não pode ser é nula. Nada existe que não possua bondade, porque o “bem” é o simples facto de ser. Nós só afirmamos, mais ou menos, a bondade das coisas, dos entes. Ou são “mais bons”, ou “menos bons”
A “maldade”, como vimos, mais não é do que privação. E esta privação de ser, privação de mais perfeição, é condição própria do ente contingente. É evidente que esta bondade dos entes contingentes, porque são contingentes, é também participada. Todos os entes são bons, mas não são absolutamente, sumamente bons. A sua bondade apela para uma Bondade Suma, final, absoluta e infinita. Esta afirmação da bondade dos entes contingentes vai ao encontro da Escritura: “Deus viu tudo o que tinha feito: e era tudo muito bom” (Gn 1,31. Cf 1,3.10.12.21.25). A propósito desta questão da privação, vale a pena observar como o redator bíblico da escola sacerdotal já havia reparado que, no acto da criação, só a luz é criada, mas não as trevas. Elas são, portanto, negação, privação (Gn 1,3). A escuridão não existe como mal, mas apenas como privação de um bem.
Isto que refletimos sobre o mal, será importante quando se refletir sobre o problema do mal diante da afirmação da existência de um Deus que É Bondade Infinita.
4 – Beleza

Todas as coisas são belas. A reflexão que fizemos acima, vale na mesma medida para a beleza dos entes. Achamos uns mais belos que outros, uns acham um ente mais belo, outros menos belo. De qualquer modo, não existe fealdade, muito menos fealdade absoluta. O que se afirma, em maior ou menor grau, é a beleza dos entes. Tudo o que é, existe, é belo na medida em que é verdadeiro, e mais ou menos belo na medida em que é mais ou menos bom. Tal como os outros transcendentais, também a beleza é contingênte, participada.
A Escritura frequentemente celebra a grandeza e o poder de Deus na criação, mas quase nunca a beleza do universo, concebido como uma obra de arte do seu autor. Exceptua-se Sab 13,3-7 e Eclo 43,9. Não há duvida que, em Sab 13,3, o texto possui um toque grego: “Se, fascinados por sua beleza, os tomaram por deuses, aprendam quanto lhes é superior o Senhor dessas coisas, pois foi a própria fonte da beleza que as criou”.
5 – Realidade

Todas as coisas são realidade. Um leitor atento deverá se perguntar, e com razão, porque é que, se já se referiu a verdade dos entes, é necessário falar da sua realidade? Acaso não são a mesma coisa?
É evidente que a verdade-em-si dos entes é o mesmo que a sua realidade. Os tenes possuem realidade em si mesmos, e essa realidade é a sua verdade, independentemente da leitura ou interpretação que o sujeito faça do real. Já falámos das recentes abordagens filosóficas em relação ao problema da verdade, e à capacidade objectiva (ou não) de se conhecer essa verdade e, concomitantemente, a realidade mesma dos entes. Também já vimos, por exemplo, a posição de Nietzsche, negando, afinal, a realidade mesma das coisas em si, e elevando ao grau de medida, em boa dose sofista, o homem e a sua subjectividade interpretativa. Nesta abordagem niilista, nem se pode falar de uma verdade-para-nós, que se tende a impor de fora para o sujeito, mas apenas de uma verdade-em-nós, que redunda numa verdade criada, fabricada pelo sujeito, mas que nada tem de realidade, a não ser a realidade de ser fabricada pelo sujeito. Nietzsche e, em boa parte, Sartre, são os dois expoentes desta corrente de pensamento filosófico que, a par da negação da verdade-em-si dos entes, acaba negando o próprio ser em si.
Menos radical, porém insustentável, é a posição neopragmática, sobretudo de Richard Rorty, o qual advoga que a linguagem nem é expressiva da interioridade humana, nem representativa do mundo exterior, nem meio configurador do mundo, entre sujeito (consciência) e objecto (realidade-em-si). Embora não negue a realidade, impõe aimpossibilidade de se dizer algo sobre ela. Porém, tal como para Nietzsche, também Rorty merece critica. De facto, o seu neopragmatismo ou não tem a pretensão de ser uma tese verdadeira em si mesma, devendo então ser desprezada, ou é assumida como verdadeira e, nesse caso, torna-se contraditória de si mesma. Fora ser uma tese gratuita, reveste-se do contraditório pela negção da mesma negação.
Seja como for, e independentemente das várias soluções gnoseológicas e teses gnoseológicas propostas pelas várias filosofias do conhecimento sobre o acto mesmo de conhecer, a realidade do ente se impõe, em virtude da sua evidência. Nesse sentido, a ontologia detém o primado sobre a gnoseologia. Sem a prioridade absoluta do ser sobre o conhecimento e a linguagem, verdadeiramente nem há conhecimento nem linguagem.
Posto o problema dos transcedentais, no próximo texto iremos abordar o problema da sua aplicabilidade, predicação a Deus, refletindo um pouco sobre o problema da linguagem teológica, enfim, de como aplicar a Deus, em que sentido e em que modos, as expressões que nós usamos.



Autor : Rui Silva

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